I. Introdução
I.1 Objetivo
Apesar dos já mais que 15 anos do início dos processos de desestatização no Brasil, não há ainda um livro voltado para aqueles que enfrentam o desafio de estruturar editais de licitação e minutas de contratos de concessão comum e PPP da prestação de serviços públicos. O objetivo desse livro é fornecer ao gestor público, ao membro da procuradoria, advocacia, ou departamento jurídico que lhe assiste um guia das principais preocupações que devem presidir a estruturação de editais de licitação e contratos de concessões comuns e PPPs para a prestação de serviços públicos.
Esse livro pretende ser também útil aos consultores que assessoram a Administração Pública no processo de desenvolvimento de projetos de concessão comum e PPP, e também, àqueles que tendo que participar de licitação de concessão comum e PPP, ou assessorar participante de licitação, procuram entender a lógica econômica, jurídica e prática subjacente à construção de editais e contratos de concessão comum e PPP.
Por fim, esse livro pode também trazer alguma contribuição para aqueles que têm por ofício analisar e julgar a adequação econômica e jurídica dos editais e contratos de concessão comum e PPP, como, por exemplo, os Tribunais de Contas, o Ministério Público, e o Judiciário.
Para atingir esse objetivo, esse livro divide-se em dois capítulos. O primeiro sobre as licitações. O seguinte sobre os contratos.
O primeiro capítulo concentra-se na estruturação de licitações que assegurem ambos a seleção de parceiro privado capaz de prestar os serviços de forma adequada, e a maximização da concorrência entre eles pelo contrato.
Além disso, as recomendações constantes do primeiro capítulo desse livro têm por objetivo também a redução das possibilidades de ocorrência de algumas situações que já se tornaram temas clássicos na literatura sobre organização industrial, regulação econômica, e direito antitruste: barreiras de entrada, conluio, captura e corrupção.
Já o segundo capítulo centra-se em orientar a redação do contrato de concessão comum e PPP para que dele conste tudo que é essencial para o alinhamento dos incentivos para a busca da eficiência na prestação dos serviços. Perceba-se que, apesar da busca da eficiência ser um imperativo da nossa Constituição Federal (art. 37, caput), ainda falta à literatura jurídica pátria sobre desestatizações o esforço de transpor tal busca para o plano da técnica de redação dos contratos de concessão comum e PPP. Nesse contexto, a nossa tentativa no presente livro é iniciar esse processo respondendo a uma pergunta extremamente básica do ponto de vista econômico-jurídico: o que deve conter cada uma das cláusulas do contrato de concessão comum e PPP para que alinhe adequadamente os incentivos das partes na direção da produção de ganhos de eficiência?[1] A resposta clara e didática a essa pergunta é o cerne do Capítulo 2.
Perceba-se que, apesar do Capítulo 1 fazer menção e utilizar como referência algumas experiências pioneiras entre nós de modelagem de licitação, ele é bastante propositivo e inovador nas suas sugestões e desdobramentos, mesmo quando considerada a experiência internacional sobre o assunto. Já o Capítulo 2 busca explicar, consolidar e unificar como melhores práticas experiências que estão mais disseminadas no nosso meio. A única parte em que ele é em vários aspectos inovador em relação à literatura pátria é na separação clara entre indicadores de serviço, sistema de pagamentos, matriz de riscos, e nos efeitos dessas separações sobre a definição dos mecanismos para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. Nisso, aliás, desdobra e avança o Capítulo 2 no detalhamento de percepções e idéias que já havíamos esboçado no nosso livro de Comentários à Lei de PPP.
Observe-se, por fim, que apesar desse livro se basear em diversos estudos acadêmicos, alguns deles bastante sofisticados, sua linguagem e seu discurso são dirigidos para fornecer explicações, subsídios e orientações para profissionais que trabalham com projetos de concessão comum e PPP. Um acadêmico tradicional se ressentirá certamente de termos simplificado e abreviado algumas discussões, malgrado o nosso esforço de reproduzi-las com precisão.
I.2 Objeto
O objeto desse livro é a estruturação de editais de licitação e contratos de concessão comum e PPP para a prestação de serviços públicos, especialmente aqueles que envolvam investimento considerável do parceiro privado, e que, portanto, requerem prazos longos para a sua remuneração, como por exemplo, as concessões comuns, patrocinadas ou administrativas, e as privatizações de empresas prestadoras de serviços públicos.
Desestatização significa aqui a transferência para o setor privado da operação de bens ou prestação de serviços, em contratos de longo prazo. Nesse sentido, concessões e PPPs são desestatizações, e constam ambas entre as modalidades operacionais para a realização de desestatização previstas no artigo 4°, inc. VI, da Lei 9.491/97, que estabelece o PND – Programa Nacional de Desestatizações. Contudo, como já fizemos notar antes neste trabalho[2], muitas vezes a realização de concessões comuns ou PPPs, na prática, aumenta o controle do Poder Público sobre a prestação dos serviços públicos e sobre os ativos empregados para tanto, e, paradoxalmente, pode-se considerar que, muitas vezes, concessões e PPPs, neste sentido, “reestatizam” a prestação de serviços públicos.
Serviços públicos são aquelas atividades econômicas que, por sua essencialidade para a coletividade, têm a responsabilidade pela sua prestação atribuída pela Constituição ou por Lei à Administração Pública, que pode escolher prestá-los por delegação à iniciativa privada.
A desestatização de serviços públicos é geralmente realizada sob a forma de concessão (comum, administrativa[3] ou patrocinada), permissão ou autorização. Dentre essas formas de delegação à iniciativa privada da prestação dos serviços públicos, as concessões comuns, administrativas e patrocinadas constituem aquelas que formam vínculo mais permanente entre a Administração e delegatário. A razão econômica para a legislação permitir a longevidade do vínculo nos contratos de concessão é que geralmente tais contratos envolvem investimentos relevantes pelo parceiro privado na infraestrutura para a prestação dos serviços, e esses investimentos precisam de prazos longos para sua depreciação, amortização e remuneração, que é feita pela cobrança de tarifas ao usuário e/ou percepção de pagamento da Administração.
O foco desse livro é a estruturação de editais e contratos que geram esses vínculos de maior permanência (concessões comuns, administrativa e patrocinadas), mas várias das suas recomendações se aplicam também aos vínculos mais precários (permissões e autorizações) para prestação de serviço público, até mesmo porque a estrutura legal e institucional montada para a realização e execução das permissões e autorizações de serviço público tem diferenças apenas pontuais em relação à incidente sobre as concessões comuns, administrativas ou patrocinadas.
Vale notar que, ao centrar atenção na realização de concessões comuns, administrativas e patrocinadas, este livro também abrange aqueles casos em que há privatização de empresas prestadoras de serviço público, que já possuem, portanto, contratos de concessão assinados com a Administração Pública. O melhor exemplo são as privatizações que ocorreram no Brasil nos setores de telefonia fixa e de distribuição de energia. Nestes setores, empresas estatais foram privatizadas, após modelagem que estabelecia um novo formato para os seus contratos de concessão, de maneira a permitir a transferência da sua gestão para a iniciativa privada, sem perder as possibilidades do poder público regular e fiscalizar a prestação dos serviços. As recomendações constantes do Capítulo 2 desse livro sobre contratos de concessão eficientes se aplicam perfeitamente à modelagem do contrato de concessão realizada, nestes casos, anteriormente à privatização dessas empresas.
Já em relação às recomendações sobre licitações eficientes constantes do Capítulo 1 desse livro, elas se aplicam nestes casos à licitação para a privatização das empresas. Contudo, por se tratar da venda de uma empresa (e não de mera concessão de um serviço sem transferência da titularidade de ativos) é preciso avaliar preliminarmente quais as capacidades técnicas e econômico-financeiras que já estão aportadas na empresa por ocasião da sua venda, e quais outras faz sentido exigir-se que os potenciais adquirentes da empresa comprovem ter no processo de licitação. A comprovação de capacidade financeira e de expertise técnica dos potenciais adquirentes da empresa na licitação será especialmente importante se o contrato de concessão da empresa exigir a realização de novos investimentos ou a prestação de novos serviços, cuja expertise para tanto não esteja aportada na empresa a ser vendida.
I.3 Terminologia
Utilizaremos, neste livro, as seguintes definições e siglas, que são apresentadas abaixo na sua ordem alfabética:
AASHTO | American Association of State Highway and Transportation Officials |
ABCON | Associação Brasileira das Concessionárias Privadas dos Serviços de Água e Esgoto |
ABCR | Associação Brasileira das Concessionárias de Rodovias |
ABDIB | Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base |
ANATEL | Agência Nacional de Telecomunicações |
ANEEL | Agência Nacional de Energia Elétrica |
ANTT | Agência Nacional de Transporte Terrestre |
ASBEA | Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura |
BID | Banco Interamericano de Desenvolvimento |
BNDES | Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social |
Bps | Basic points, expressão usada ordinariamente no mercado financeiro para precificação de taxas, como proporção de valor da operação. 100 bps corresponde a 1%. |
CAF | Corporação Andina de Fomento |
CBUQ | Concreto Betuminoso Usinado a Quente |
CCHSA | Canadian Council on Health Services Accreditation, instituição canadense que realiza processo de certificação de qualidade no setor de saúde |
CDI | Certificados de Depósito Interbancário. O CDI é mencionado neste trabalho em virtude das taxas que regem esses títulos serem usadas muitas vezes para indexação de empréstimos bancários, ou no mercado de capitais. |
CEF | Caixa Econômica Federal |
CNT | Confederação Nacional dos Transportes |
Comentários à Lei de PPP | O livro intitulado Comentários à Lei de PPP – fundamentos econômico-jurídicos, publicado pela Malheiros Editores, 2007, de co-autoria entre Mauricio Portugal Ribeiro e Lucas Navarro Prado |
Concessão administrativa | O contrato administrativo definido no art. 2°, §2°, da Lei Federal 11.079/04 |
Concessão comum | O contrato administrativo definido no art. 2°, incisos II e III, da Lei Federal 8.987/95 |
Concessão patrocinada | O contrato administrativo definido no art. 2°, §1°, da Lei Federal 11.079/04 |
Contrato de Desestatização de Serviço Público[4] | Os contratos de concessão comum, patrocinada e administrativa, as permissões e as autorizações, quando realizados para a prestação de serviços públicos |
Desestatização | Transferência da operação de bens ou serviços em contratos de longo prazo de entes estatais para o setor privado |
Desestatização de Serviço Público | É a Desestatização da prestação de Serviço Público |
FAT | Fundo de Assistência ao Trabalhador, cujos recursos são utilizados pelo BNDES para realização de empréstimos de longo prazo a juros subsidiados. |
FIDC | Fundo de Investimento em Direitos Creditórios |
FMI | Fundo Monetário Internacional |
IBGE | Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística |
IFC | International Finance Corporation, órgão do Banco Mundial, de fomento à iniciativa privada em países em desenvolvimento |
IGP | Indíce Geral de Preços, calculado pela FGV – Fundação Getúlio Vargas |
IPCA | Índice de Preços ao Consumidor Amplo, calculado pelo IBGE |
IRI | International Roughness Index, que é o índice de irregularidade longitudinal, utilizado, em conjunto com outros índices, para medir a qualidade do pavimento de rodovias |
ISO | International Organization for Standardization |
JCI | Joint Commission International, instituição americana que realiza processo de certificação de qualidade no setor de saúde |
Lei de Concessões | A Lei Federal n. 8.987/95 |
Lei de PPP | A Lei Federal n. 11.079/04 |
Lei Geral de Concessões | A Lei Federal n. 8.987/95 |
LIBOR | London Interbank Offered Rate, que é a taxa usada nos empréstimos no mercado interbancário de Londres, que é referência para vários empréstimos internacionais. |
Licitação de Desestatização[5] | É o processo seletivo do ente da iniciativa privada a controlar, gerir e operar os bens ou serviços a serem desestatizados |
MIGA | Multilateral Investment Guarantee Agency |
OMC | Organização Mundial do Comércio |
ONA | Organização Nacional de Acreditação, instituição brasileira que realiza processo de certificação de qualidade no setor de saúde |
PAC | Programa de Aceleração do Crescimento |
Parceiro privado | A SPE em concessões comuns, patrocinadas ou administrativas |
PER | Programa de Exploração da Rodovia |
PFI | Private Finance Initiative, programa que é parte do programa de PPP do Reino Unido. Apesar da sua diversidade, os projetos que integram o PFI geralmente envolvem a transferência para o parceiro privado das atividades de construção, operação e manutenção de infraestruturas. No caso, por exemplo, dos setores de saúde e educação, os projetos integrantes do PFI não transferem para a iniciativa privada a atividade fim, apenas a prestação dos serviços de infraestrutura e apoio. Portanto, nos PFIs dos setores de saúde e de educação ficam sob a responsabilidade do setor público respectivamente a atividade pedagógica, e a atividade clínica. |
PNAD | Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE |
PPP – Parceria Público-Privada | As Parcerias Público-Privadas em sentido amplo, o que abrange as concessões comuns, as concessões administrativas e patrocinadas. |
RFFSA | Rede Ferroviária Federal S/A |
SDE | Secretaria de Direito Econômico, do Ministério da Justiça |
Serviço Público | É a atividade econômica que, pela sua essencialidade para a coletividade, tem a sua prestação colocada sob a responsabilidade da Administração Pública, pelas Constituições, da União ou dos Estados, pela Lei Orgânica dos Municípios, ou pela Lei, federal, estadual ou municipal. |
SEAE | Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda |
SPE | Sociedade de Propósito Específico, constituída para celebrar o Contrato de Desestatização |
STF | Supremo Tribunal Federal |
STJ | Superior Tribunal de Justiça |
TCE | Tribunal de Contas do Estado |
TCM | Tribunal de Contas do Município |
TCU | Tribunal de Contas da União |
TJLP | Taxa de Juros de Longo Prazo, a taxa subsidiada utilizada pelo BNDES para os empréstimos realizados, com fundos do FAT |
TJMG | Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais |
TJSC | Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina |
TJSP | Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo |
Notas
[1] Apesar desse capítulo tocar em vários temas atinentes à transferência para os usuários e para a Administração Pública de pelo menos parcela dos ganhos de eficiência gerados pelo parceiro privado, o seu principal objetivo é apenas elencar o que é indispensável, do ponto de vista da técnica de redação contratual, para obter o alinhamento dos incentivos das partes para a produção de ganhos de eficiência.
[2] Cf.:nota de rodapé n. 1, acima.
[3] Existe discussão sobre em que medida a concessão administrativa pode ser ou não utilizada para prestação de serviços públicos econômicos. Para tratamento adequado desse temas, remetemos ao nosso (Ribeiro & Prado, Comentários à Lei de PPP - fundamentos econômico-jurídicos, 2007), II.2.
[4] Ver nota de rodapé n. 1 sobre a relação entre o conceito jurídico de desestatização e a utilização de concessões e PPPs para aumentar o controle do Poder Público sobre a prestação dos serviços públicos.
[5] Ver nota de rodapé n. 1 sobre a relação entre o conceito jurídico de desestatização e a utilização de concessões e PPPs para aumentar o controle do Poder Público sobre a prestação dos serviços públicos.
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